Acredito que todos os pais sabem o que é ter um daqueles dias em que tudo parece difícil. As peças vão caindo, uma atrás da outra, e de repente já não sabemos nada, não sabemos que tipo de pais somos, que tipo de filhos temos. Sim, lá no fundo sabemos o que fazer, os pais sabem sempre. Mas isso não significa que sejamos sempre capazes de ser fortes e “crescidos”. Às vezes, também nós voltamos a ser crianças.  
Os terríveis 2 já lá vão e estão aí à porta os frustrantes 3. O Gui é um menino divertido, com um humor apurado, inteligente, que nos surpreende todos os dias quando diz uma frase complexa, ou quando nos mostra que tem um coração gigante. Mas o Gui é também uma criança que fica frustada com facilidade, basta não conseguir fazer alguma coisa que quer, basta as coisas não estarem exactamente como ele imagina, basta não ter dormido tanto, basta estar zangado com alguma coisa, basta a rotina dele ser alterada. É uma criança mais física, que ainda não sabe expressar o que sente e dar a volta, ainda precisa muito de ajuda para isso. Não tem sido fácil lidar com algumas dessas atitudes, não por nós, mas acima de tudo pelo julgamento dos outros, porque toda a gente sabe que os outros têm sempre filhos que não fazem birras, que não batem, que emprestam tudo, que se portam sempre bem.  

No sábado decidimos ir passear. Fazer coisas. Ocupar o Gui depois de uma semana mais complicada em que esteve doente e mais tempo em casa. O nosso objetivo é ele ter um momento bom, mas ele não sabe isso, ele ainda é criança. Entre as rotinas matinais que já eram complicadas, mas que agora com a Laura por vezes são caóticas, muito choro, gritos, bolachas partidas no chão, umas calças que não queria, desafios, bonecos pelo ar. A birra foi minha também. Não dormi nada, estava cansada, e é difícil aceitar que estamos apenas a tentar fazer algo por eles e eles não entendem, eles sentam no chão em lágrimas, irritados, perguntamos porquê mas a resposta ou não chega ou é “não sei”. Mas eu sei, eu sei que eu devia manter a calma, saber falar com ele, estar lá ao lado dele quando ele mais precisa. Eu sei que devia apressar a saída de casa e resolver a situação, em vez disso prolonguei-a com o meu próprio drama, com a minha própria birra. Uma viagem atribulada, a Laura é um bebé que detesta andar de carro. Mais choro e lágrimas. Porque o sol lhe bate na cara, porque não quer aquela música, porque virei à esquerda e era à direita. 

Estacionamos. Uma garrafa inteira despejada em cima dele e da cadeira do carro, “ia lavar a chupeta”. O cansaço vai-se apoderando de nós, às tantas eu já perguntava alto se seríamos os únicos pais a quem isto acontece. Estava zangada, frustada. Se ele vê isso nos pais, tem ainda mais motivos para ficar instável. 

Finalmente a calma, o riso na cara dele enquanto via os peixes nos aquários. A Laura a dormir no pano. A felicidade novamente. Somos novamente melhores pais. Ele limpa as lágrimas dele. Eu limpo as minhas. Dou-lhe beijos, peço desculpa, ele mal ouve porque quer ver tudo, correr tudo, está feliz. E eu também. Sinto culpa de não ter lidado melhor com tudo aquilo e prometo a mim mesma que vou fazer melhor na próxima vez.

No final da tarde, o Gui brinca num parque. Vários miúdos brincam também. Correm, estão todos eufóricos e felizes. O Gui ri alto, chama-me “olha mãe, viste o que eu fiz?” E eu sorrio. Sim vi, vejo sempre. Não saio dali por um segundo. Está calor, estou cansada, a Laura suja 3 fraldas que o pai vai mudar, suja a roupa toda, e eu ali. Sempre a vê-lo ser criança, ser feliz. Por vezes ele sobe o escorrega em vez de dar a volta. Vários miúdos estão a subir, peço uma ou duas vezes para ir à volta, mas ele quer fazer aquilo, é giro, é tudo insuflável, eles caem e riem. Duas meninas brincam ali também, os pais sentam-se mais longe, não as conseguem ver. A irmã mais velha tem uns 5 anos e cuida da mais nova que tem uns 2. A mais nova sobe o escorrega com mais crianças. Cai e bate com a cabeça no fundo. Nada grave, chora. A mãe dela vem a correr. Eu vi tudo. Vi que ninguém teve culpa, são crianças, correm, brincam, desafiam, exploram, testam o que conseguem fazer, caem também. 
Chamei o Gui e ele veio, disse para ter cuidado, que aquela menina caiu e magoou-se e pode acontecer-lhe o mesmo. Ele vai brincar e eu fico a ver os pais que acolhem a pequena que caiu e as retiram do parque. A mais velha descreve a cena, diz que a culpa foi do Gui, que ele subiu o escorrega. 

“Os pais dele avisaram, mas ele é um menino muito teimoso, ele é um menino muito mau”.

 A mãe que não viu nada porque se senta longe enquanto as filhas brincam concorda. Beija a cabeça da filha mais velha. Aceita que ela chame assim outro menino de mau. Eu sinto o meu coração encolher. Aquelas palavras eram as últimas que eu queria ouvir num dia daqueles. Olho de novo, o Gui está feliz, talvez não tenha ouvido que é que mau. Às vezes ele diz em casa “sou muito mau” e eu corrijo sempre, nunca lhe disse que ele era mau, nunca. Mas alguém já deve ter dito. Nunca deixarei que ele chame mau a outro menino, que atribua rótulos, que julgue injustamente. Nunca deixarei que ele coloque outros meninos de parte, que exclua, que incentive, que minta. Pode até vir a fazer isso quando eu não vejo, mas não permitirei nunca que o faça quando estamos ali. Explico sempre que é errado. E eu estou sempre ali, eu vejo-o brincar, eu não saio dali. 

As crianças não merecem que lhes sejam atribuídos rótulos. Nós nunca sabemos que vida tem aquela criança, que situação difícil está a viver, que estado de saúde tem, que caminho faz. Nunca devemos julgar assim. Eu acho que, como pais, temos a obrigação de lhes mostrar que não podemos julgar, apontar o dedo, chamar nomes, excluir. Muitas vezes esses ditos “meninos maus” só o são porque são colocados de parte, porque vem um deles, aponta o dedo e diz “este menino é mau”, “este menino é feio”, “este menino é gordo”,… E com isso estamos muitas vezes a magoar muito uma criança e a definir que ela será. 

Todos nos lembramos da escola. Do perigo da discriminação. Da influência dos grupos. Do medo de ficar de lado. Somos nós que podemos mudar isso. 

Não há meninos maus. Há meninos. Crianças. Feitios. Temperamentos. Personalidades. E se não formos nós a parar com os rótulos, um dia podem ser os nossos filhos as vítimas.  

O Gui é uma criança. Eu tento apagar as palavras daquela menina. Porque magoam.