Todos temos um limite, acreditem. Todos sem exceção, mesmo que achem que não. Ando há vários dias a engolir as merdas que me passam pelos olhos, muito ao estilo “não alimentes negativismo”. Mas cansa, sabem? Cansa mesmo muito. Talvez seja pelo nome, quem chama a um blogue “No Colo da Mãe” não se passa, certo? Tem sempre um ar amoroso e responde com corações a toda a gente que por cá passa. Mas essa não sou eu. Porque todos temos um limite. E o meu foi atingido. Amanhã talvez já tenha passado, é sempre assim. Às vezes só precisamos deitar tudo fora, respirar fundo e recomeçar. Sabem o que me mete nojo? As pessoas esquecerem-se que estive 3 anos e meio em casa. Sim, a decisão foi minha. Já agora, a melhor da minha vida. Repetia mil vezes. Mas custa e vocês que o digam, que estão a trepar paredes 15 dias depois. Estive bem, estive menos bem, estive sozinha, bati no fundo de uma solidão incrível que não conhecia. Talvez não me conheçam, eu adoro sair, viajar, sou sociável desde criança, adoro uns copos com amigos no final da tarde de trabalho, não me calo, tenho conversa para 100 horas seguidas, adoro viajar, adoro ter pessoas à volta e durante muito tempo sonhei trabalhar num aeroporto. Sempre preferi o caos à calma, sempre adorei cidades cheias de gente, e não o campo sossegado. Mas as coisas mudam, eu adapto-me. Ficar em casa com a minha filha implicou desligar um lado meu, aprender a viver mais tempo sozinha, a não ver pessoas todos os dias (pelo menos adultas), ensinou-me a esperar, a respirar fundo, mostrou-me que conseguia fazer mil merdas em casa que nem sonhava. Trouxe-me pessoas novas, mas acreditem, foi lixado perder amigos de sempre, não é bem perder, mas é sentir que estão a anos de distância de nós. Lidar com a culpa, com o sentimento de inferioridade, com acharmos que somos umas inúteis que não sabemos o que é trabalhar. Been there, done that. Outra coisa que irrita, ouvir aquela merda que sai da boca de algumas pessoas “ficas em casa porque podes, tens sorte” … não, não tenho! Não sabes se tenho, não sabes a minha vida, o que deixei para trás. Sou muito grata por ter conseguido fazer isso, mas não foi sorte, de todo. Podia estar aqui um dia inteiro a explicar aquilo que tivemos que fazer para poder estar em casa, mas nem vale a pena a enumeração. As pessoas que me dizem isso geralmente estão a marcar a próxima viagem de férias. Nunca fiquei quieta, fui sempre reinventando a mãe que sou, para estar à altura deles. Não os deixei com ninguém, não tive apoios ou ajudas, não saí de casa sozinha duas mãos cheias de vezes em 3 anos. Foi uma escolha, a minha, mas cansa. Durante algum tempo achei que não me podia queixar de escolhas minhas, mas óbvio que posso, sou humana e os humanos fazem isso. Depois um dia surgiu um projeto meu, aquele que tanta gente acha que caiu do céu. Um projeto que nasceu com sucesso porque o trabalho para trás estava feito, mas há sempre quem insista em só ver o presente. Estive 2 anos a dar tudo de mim. A publicar atividades que no início ninguém queria saber. Sabem quantas pessoas se interessavam por atividades deste tipo há uns anos em Portugal? Não era propriamente como agora, que os perfis a partilhar atividades parecem pipocas a saltar. Várias pessoas abriram caminho a isso, e a Okapi nasceu de muito, muito esforço. Adiei meses porque era impossível pagar um sonho meu. Pedi € emprestado aos meus pais e à minha sogra (a quem vou agradecer toda a vida). Sem eles seria impossível. As primeiras tintas que comprei para pintar 100 frascos de arroz foi a minha avó de 79 anos que pagou! Assim como quase todas as compras desse mês enquanto eu investia numa loucura. Eu não podia. Fiz toda a gente acreditar que isto resultaria e que eu teria dinheiro para pagar de volta, que isto funcionava. E adivinhem? Não tinha assim tanta gente que acreditasse em mim. Não havia nenhuma caixa para provar que resulta. É mais fácil agora para todas as clientes e amigas que criam uma caixa do género. Quando o fiz não havia caminho já feito. Agradeci tanto o apoio que tanta gente me deu, em troca de nada, ou em troca de uma caixa, que de nada vale. Sou grata para sempre. O projeto cresceu às custas de lágrimas, tantas que teriam dificuldade em acreditar. Atirei coisas ao ar, gritei, desanimei, disse que ia desistir. Sou uma pessoa insegura e com muita dificuldade em ver quando faço algo bem. Tive a sorte de ter ao meu lado o melhor companheiro, e uma mão cheia de pessoas que nunca me deixam desistir. Cá fora, o ar sempre o mesmo, sempre feliz, sempre positiva, sempre a dar tudo, a engolir as mensagens mais duras e injustas porque já se sabe, o cliente tem sempre razão. Vi pessoas que me apoiavam a virar costas, talvez achassem que estava demasiado bem para precisar de ajuda. Vi pessoas a trair a minha confiança. E tudo isso me tornou mais forte. Acho eu. Mas sabem, o desgaste está cá, mais de metade do tempo da Okapi envolveu ser mãe a tempo inteiro, estar em casa, dar mama, colo, brincar, criar atividades, ter filhos doentes em quase todas as semanas de envio (que pontaria!), continuar a partilhar atividades (e a receber mensagens “agora que tens a Okapi já nem partilhas nada para quem te seguia antes” e a responder a quem nos procura, e mesmo assim, trabalhar. Queixei-me poucas vezes, a escolha era minha e eu estava feliz, estou feliz. Trabalhar assim não cansa. Trabalhar e ter a minha filha comigo, muitas vezes os dois, sempre em primeiro lugar. Tanta gente agora que se queixa (e com razão) de Teletrabalho e com miúdos em casa, e falam como se eu não conhecesse a situação, na verdade eu quase só conheço essa realidade. Depois tive um marido a trabalhar em casa também, primeiro só alguns dias, depois a tempo inteiro. Tem um lado incrivelmente bom, acreditem. Mas um negro de que ninguém fala, só agora que há casais em casa e em desespero 2 semanas depois. A vida de casal afunda, não é fácil estar 24h com a mesma pessoa, não ter um espaço definido, não ter como escapar da presença, aquela que sabemos que nos faz felizes, mas que desgasta sem querermos, que magoa sem sabermos como resolver. Que gera discussões que não queremos recordar. E durante muitos dias, apesar de tantas coisas boas na minha vida, havia um aperto no peito que me fazia ficar noites inteiras sem dormir e que me faziam chorar mesmo quando devia estar feliz. 

Quando finalmente encontramos uma bolha de oxigénio, quando decidimos que este é o ano em que tudo muda, quando me inscrevo no ginásio sem tanto sentimento de culpa, quando começo a sair sozinha, a ter umas horas para mim, a conseguir trabalhar sem eles sempre ao meu lado e ao meu colo, quando me lanço num desafio enorme de fazer o dobro das caixas num mês, numa edição que me deixou tão feliz, tudo muda no mundo. Não me atingiu a mim, não sou tão prepotente e egoísta assim. Atingiu-nos a todos. A todos mesmo, a uns mais que a outros. Eu engoli rápido as queixas porque tenho o discernimento de ver que estar em casa é algo bom, é algo que devo agradecer. No dia 2 de isolamento, com uma tonelada de trabalho pela frente e duas crianças em casa, o meu marido é despedido. Aquilo que nunca imaginámos aconteceu. E de repente nem se consegue pensar com clareza, o mundo está a mudar, estamos todos a processar o que raio se está a passar e ficamos sem chão. A Okapi passa a ser um sustento quando até aqui era um sonho, um projeto. Como vamos viver de um projeto? Não sabemos e não tivemos tempo de processar ainda, siga a criar um arco-íris porque vai passar, vamos ficar todos bem. Vamos partilhar com o mundo o que podemos, vamos criar atividades que inspirem, vamos oferecer kits que possam dar algum alento. Mas foda-se, ler merdas como “com essa casa também eu ficava de isolamento”, “nem te devias queixar”, “agradeço o kit, mas devia estar mais completo” ou ver tanta gente atirar ao ar que quem faz atividades não bate bem, que isto de ser mãe perfeita já lá vai. Ler julgamentos constantes, como se conhecessem a minha vida. A gota de água é quando alguém te diz que se eu soubesse o que era estar em casa há vários anos, num apartamento, que agora tinha vergonha e parava de publicar estas merdas. Se calhar estas mensagens vêm de alguém que o apartamento T1 sem janelas em Lisboa foi duas vezes mais caro que a minha casa. Se calhar metade das pessoas não queria morar atrás do sol posto como eu, eu também não queria, o meu marido não tinha este sonho, também tínhamos outros, acreditem. Mas um dia tivemos que decidir e para termos uma casa com um jardim teria que ser num sítio onde 80% das pessoas se calhar nem queria. Sou tão grata pelo jardim que tenho, mas estive 3 anos para o poder fazer, morei aqui com a minha filha em casa todos os dias e sem jardim. Agradeço todos os dias agora, quando no verão passado abdicámos das férias, uma vez mais, no único verão em 5 anos onde até podíamos pagar uns dias fora, para acabar o jardim. Sabem, nunca me esqueço do dia em que convidei pessoas que nunca tinham vindo a minha casa para o aniversário da minha filha, entraram no famoso quarto de brincar com alguma expectativa e os comentários (não num tom ofensivo atenção) foram “ah, é tão mais pequeno do que parece nas fotos”, e a admiração por algo que se calhar parece incrível, desvaneceu-se ali. Normal. A vida não são fotos de Instagram, e quem ainda não entendeu, deve mesmo olhar mais para a sua própria vida do que para a vida dos outros das redes sociais. Talvez o quarto não tenha tanto encanto quando se veem ao vivo os móveis que comprei a prestações no Ikea para o quarto do Gui há 6 anos. Por isso, foda-se para isto tudo. Raramente digo asneiras aqui, porque não é para isso que aqui estou. Mas todos temos um limite. Sejam mais gratos pelo que têm, e se não gostam do que veem, podem só deslizar o dedo que tudo desaparece. Sejam mais empáticos porque o “estamos todos no mesmo barco” tem que ser real, e sim, talvez uns barcos pareçam melhores que outros, sem dúvida, mas todos temos as nossas fragilidades, e acreditem, aqui estamos a lidar com muitas. Nada é tão grande como se vê nas fotos. Nem o nosso limite.